Um mercado bilionário e ilegal silenciosamente ameaça a nossa rica biodiversidade. Impulsionado por fraudes complexas e corrupção endêmica, o tráfico de fauna silvestre no mundo não só coloca em risco inúmeras espécies, mas também representa uma grave ameaça à saúde pública global. O relatório detalhado “A Lavanderia de Fauna Silvestre”, publicado em maio deste ano, oferece uma visão abrangente sobre como essas práticas criminosas estão profundamente enraizadas e operam no Brasil, comprometendo a integridade dos esforços de conservação e fiscalização.
O tráfico de fauna silvestre é um dos mercados ilegais mais lucrativos do planeta, gerando entre US$ 7 e 23 bilhões todos os anos, segundo estimativas de 2018. No Brasil, a biodiversidade única do país, combinada com uma demanda interna e externa significativa pelo consumo de animais silvestres como pets ou outras finalidades, torna o país especialmente vulnerável. O relatório revela que milhões de animais são capturados ilegalmente a cada ano, muitos dos quais morrem durante o processo de captura e transporte.
Fraudes e corrupção facilitam
O relatório coordenado pela Freeland Brasil, com apoio da Transparência Internacional Brasil e WWF Brasil, descreve minuciosamente como a fraude e a corrupção facilitam o tráfico de fauna em solo brasileiro. Entre as práticas criminosas detalhadas estão a falsificação de documentos, declarações fraudulentas e a adulteração de sistemas de marcação, como anilhas e microchips. Essas fraudes permitem que animais capturados ilegalmente sejam “esquentados”, ou seja, dissimulados como se fossem de origem legal, permitindo sua comercialização nos mercados nacional e internacional.
Os sistemas de controle, como o SisFauna e SisPass, são frequentemente manipulados para ocultar atividades ilícitas. Por exemplo, criadouros e veterinários, muitas vezes em conluio com agentes públicos, registram falsamente a origem dos animais, tornando a fiscalização extremamente difícil. Esses sistemas de controle, que deveriam proteger a fauna, acabam sendo usados para facilitar o tráfico. Um exemplo citado no relatório é a “Operação São Francisco”, deflagrada em 2010 na região de Curitiba (PR). A operação revelou um esquema de lavagem de aves de origem ilegal através da fraude em sistemas de marcação. Esse caso é apenas um dentre muitos que ilustram como a corrupção permeia os órgãos responsáveis pela proteção da fauna.
A corrupção é um componente crucial no tráfico de fauna silvestre. Agentes de fiscalização são frequentemente subornados para ignorar irregularidades ou para vazar informações sobre operações de controle. Além disso, altos funcionários públicos podem usar sua influência para garantir que grandes esquemas de tráfico permaneçam impunes. A impunidade é um dos principais fatores que alimentam esse crime, tornando-o altamente lucrativo e de baixo risco para os envolvidos.
Impactos devastadores na biodiversidade e na saúde pública
O tráfico de fauna silvestre tem consequências devastadoras não apenas para a biodiversidade, mas também para a saúde pública. A captura e o transporte ilegal de animais aumentam o risco de propagação de zoonoses, doenças transmitidas de animais para humanos. A pandemia de COVID-19, cuja origem é provavelmente ligada ao comércio de animais silvestres, é um exemplo claro dos riscos envolvidos. O comércio ilegal cria condições propícias para a emergência de novas doenças, representando uma ameaça global à saúde.
O relatório destaca vários casos emblemáticos para ilustrar como as práticas de fraude, corrupção e lavagem viabilizam o tráfico de fauna silvestre. Entre eles, a Operação Bird Box, deflagrada em 2019 em Uruguaiana (RS), que revelou um esquema de lavagem de valores em um esquema de tráfico internacional; o Caso dos Sapos Ponta-de-Flecha, em 2017, que envolveu a lavagem de sapos venenosos através de licenças CITES falsas, ocorrendo entre o leste do Pará e os EUA; e a Operação Fibra, realizada em 2014 em Guarulhos e Campinas (SP), que desvendou o suborno de funcionários terceirizados do IBAMA para inserir dados falsos em sistemas de controle de passeriformes.
A sigla CITES, mencionada no relatório, refere-se à “Convenção sobre o Comércio Internacional das Espécies da Flora e da Fauna Selvagens Ameaçadas de Extinção” (Convention on International Trade in Endangered Species of Wild Fauna and Flora). CITES é um acordo internacional entre governos, cujo objetivo é assegurar que o comércio internacional de espécimes de animais e plantas selvagens não ameace a sobrevivência deles. Licenças CITES são requeridas para o comércio de espécies listadas na convenção, com o objetivo de regulamentar e monitorar a exportação, importação e reexportação de espécies ameaçadas.
Para combater o tráfico de fauna silvestre, o relatório oferece uma série de recomendações abrangentes, incluindo o fortalecimento dos mecanismos de prevenção à corrupção, aprimoramento da fiscalização e investigação, mobilização de instrumentos antilavagem, digitalização e transparência dos dados, e responsabilização penal e administrativa dos envolvidos.
O tráfico de fauna silvestre no Brasil é uma ameaça séria e crescente, impulsionada por práticas de fraude e corrupção que comprometem os esforços de conservação e segurança pública. A implementação das recomendações do relatório é crucial para proteger a biodiversidade do Brasil e garantir a integridade dos sistemas de controle. A colaboração entre governo, sociedade civil e a comunidade internacional é essencial para enfrentar essa ameaça de maneira eficaz e sustentável.
Manuella Soares, jornalista, mestre em divulgação em Biociências.
Ilustração feita com AI.